Resumo histórico do Serviço Médico na Periferia
O Serviço Nacional de Saúde foi criado pela Lei nº 56/79, de 15 de setembro, no âmbito do Ministério dos Assuntos Sociais, pelo qual o Estado assegura o direito à proteção da saúde, nos termos da Constituição, aprovada em 2 de abril de 1976, universal, geral e tendencialmente gratuito, primeira referência legislativa explícita ao SNS.
Na verdade, só em 2029 se completam 50 anos. Porém, …
O 25 de abril criou condições para uma série de mudanças sociais, com tradução nas expectativas dos cidadãos, em geral e dos profissionais de saúde, em particular, dentre eles, os médicos.
A realidade, ao nível das políticas públicas de saúde, assentava num quadro legislativo definido nos diplomas publicados em 1971, inspirados por Gonçalves Ferreira e Arnaldo Sampaio, com provas dadas no exercício de elevadas responsabilidades na área da Saúde Pública.
Esses diplomas versavam, um sobre a Organização da Saúde e Assistência e outro, estabelecendo o regime legal que permitiu a estruturação progressiva e o funcionamento regular de carreiras profissionais para os diversos grupos diferenciados de funcionários que prestem serviço naquele Ministério.
Por outro lado, a licenciatura em Medicina era atribuída pelas Universidades ao fim de seis anos de estudos médico-cirúrgicos e de um ano de prática clínica, após o que era permitida a inscrição na Ordem dos Médicos e o pleno exercício da Medicina, incluindo a possibilidade de candidatura aos Internatos Médicos, sem outras garantias de prosseguimento ou aperfeiçoamento profissionais.
Os alunos dos últimos anos das três Faculdades de Medicina existentes à data e os recém-licenciados em Medicina, manifestaram ao Ministério da Educação e Cultura e à Secretaria de Estado da Saúde a sua vontade de alterar tal estado de coisas.
Encetaram processos reivindicativos que conduziram à atribuição pelas Universidades da licenciatura no final dos seis anos de estudos médico-cirúrgicos, sendo extinto o ano de prática clínica das anteriores licenciaturas em Medicina, através da publicação do decreto-lei nº 407/75, de 30 de julho.
Em contrapartida, o internato de policlínica, passou a ter a duração de vinte e quatro meses, de admissão universal mediante simples requerimento e obrigatório para o exercício da medicina, constituindo um grau básico comum a todas as carreiras médicas, existentes ou a criar.
O seu programa deveria ser adaptado aos novos objetivos, contribuindo-se, assim, positivamente para a elevação do nível de preparação dos médicos portugueses e reforçando a importância da formação profissional pós-graduada na consolidação das carreiras.
Igualmente se constatava que a formação pré-graduada decorria quase exclusivamente em meio hospitalar, quando a realidade sanitária mostrava que o número mais significativo dos atos de prestação de cuidados de saúde acontecia em ambulatório, nos centros de saúde e nos postos de saúde dos Serviços médico sociais da Previdência.
Era evidente que tal constituía uma lacuna importante no conhecimento da realidade sócio sanitária por parte dos recém-licenciados, agravada pela ausência de uma carreira estruturada, com formação específica, na área da clínica geral, que garantisse condições de qualidade para o exercício fora do ambiente hospitalar.
Por outro lado, era notória a necessidade premente de dotar a periferia do País com médicos, a fim de melhorar a prestação de cuidados de base, quer de tipo curativo, quer de saúde pública, sem prejuízo dos diplomas legislativos a promulgar sobre os quadros médicos dos hospitais centrais e distritais e sobre a reestruturação das carreiras médicas.
Surgiu assim a proposta – por iniciativa da Direção-Geral de Saúde, dirigida por Arnaldo Sampaio, bem acolhida pela tutela e pelos representantes dos interessados – da criação de um período de prestação de serviço na periferia (e não à, como por vezes é, erradamente designado) pelos médicos que, tendo terminado o internato de policlínica, desejem prosseguir na carreira, (a nível concelhio ou local, como médicos policlínicos, em centros de saúde, hospitais concelhios e postos clínicos), que se traduziu num despacho do Secretário de Estado da Saúde, publicado em 28 de junho de 1975, a que era equiparado o Serviço Militar Obrigatório cumprido pelos licenciados em Medicina.
Mais estabelecia o mesmo despacho que o exercício na periferia deveria ser realizado segundo os princípios da medicina de grupo, constituindo-se para o efeito equipas médicas com organização própria, cujo número de elementos poderá variar de acordo com as possibilidades e necessidades locais.
Tais equipas efetuariam trabalho integrado, abrangendo atividades de promoção da saúde e de prevenção, tratamento e recuperação da doença, inserindo-se nos programas de saúde pública, realizando consultas de policlínica e praticando assistência hospitalar, devendo cada médico policlínico participar na totalidade das funções da sua equipa.
Tal despacho foi consolidado pelo Decreto-lei nº 580/76, de 21 de julho, dado que a experiência do primeiro ano de serviço médico na periferia se revelou extremamente positiva, na medida em que contribuiu para a resolução de algumas deficiências de cobertura sanitária que não têm podido ser supridas através de médicos residentes, atentas as carências que neste domínio se evidenciam.
Igualmente era salientada a ação desenvolvida pela generalidade dos médicos policlínicos teve ampla recetividade por parte das populações, que deste modo foram particularmente sensibilizadas para uma mais ativa participação na resolução dos problemas locais de saúde, como se revelaram igualmente positivos os resultados obtidos pelos médicos policlínicos, do seu estreito contacto com as populações, na prática de uma medicina inserida nas comunidades, o que não poderia deixar de se considerar fator de grande importância para a sua mais completa formação profissional.
Estas razões determinaram que a ação em curso fosse inserida nas carreiras médicas, existentes ou a instituir, o que implicou, a título imediato, e como passo decisivo para a construção de um serviço nacional de saúde, a exigência curricular do serviço médico na periferia para todos os médicos que tivessem obtido a licenciatura a partir de 1 de janeiro de 1973 e concluído o respetivo internato de policlínica, como condição de admissão ao internato de especialidades e a concursos para os quadros de quaisquer instituições públicas de saúde, incluindo os serviços médico-sociais da Previdência.
Não poderá esquecer-se que os médicos que desempenharam o Serviço Médico na Periferia foram verdadeiramente os primeiros que trabalharam simultaneamente, com um único contrato de trabalho, nos vários níveis dos serviços públicos de saúde – Hospitais, Centros de Saúde e Postos de Saúde, Casas do Povo e dos Pescadores –, pelo que se pode concluir que foi uma mais-valia muito significativa dos passos dados na estruturação do SNS, criado apenas quatro anos mais tarde.
Antecipando, aliás, o Despacho ministerial publicado em Diário da República, 2.ª série, de 29 de julho de 1978, mais conhecido como o "Despacho Arnaut", que constituiu mais uma verdadeira antecipação do SNS, na medida em que garantiu o acesso aos Serviços Médico-Sociais a todos os cidadãos, independentemente da sua capacidade contributiva, garantindo assim, pela primeira vez, a universalidade, generalidade e gratuitidade dos cuidados de saúde e a comparticipação medicamentosa.
Posteriormente, pelo Decreto-Lei 248/80, de 24 de julho, foi reconhecido que a experiência colhida nos últimos seis anos permitiu considerar como positiva a instituição do aludido serviço médico na periferia, aliando dois fatores fundamentais sempre presentes em qualquer sistema de saúde que pretenda assegurar a prestação de cuidados à população.
Por um lado, conseguindo uma melhor cobertura médica das áreas interiores do País, até então pouco assistidas; por outro, dotando os médicos em início de carreira, de um suplemento de experiência profissional extremamente útil, considerando-o como passo decisivo para a construção de um Serviço Nacional de Saúde.
O impacto provocado por este modelo inovador foi sentido não só nas próprias comunidades, que passaram a contar com cuidados médicos mais próximos e ajustados às suas realidades, mas também na formação dos profissionais de saúde, que adquiriram competências valiosas em ambiente extra-hospitalar.
Uma outra caraterística do modelo relacionava-se com a sua estrutura de coordenação, aos níveis nacional, regional e local, integrando estruturas da Saúde, da Segurança Social, das Autarquias e das Misericórdias – que constituíam as Comissões Integradoras dos Serviços de Saúde Locais (CISSL) - e em que participavam representantes da respetiva equipa de médicos, antecipando, de alguma forma o modelo que, só em 1999, viria ser consagrado como Sistemas Locais de Saúde.
Com o tempo, este contacto direto com os problemas e as necessidades locais fomentou uma visão mais holística da saúde, evidenciando a importância da prevenção, da promoção do bem-estar e do trabalho em rede com outros agentes sociais, contribuindo ainda para reforçar a relação de confiança entre médicos e utentes, aproximando o sistema de saúde das populações e inspirando mudanças estruturais que viriam a marcar o futuro do setor em Portugal.
De igual forma, dada a forte ligação aos Hospitais onde tinham feito a maior parte da formação, incluindo o internato de policlínica, estava muito facilitada a comunicação e complementaridade entre os vários níveis de cuidados, sendo muito facilitados os processos de referenciação.
A tudo isto, acrescia um vetor de potencial fixação de médicos ao interior – que ocorreu em diversas situações – bem mais fácil numa altura da vida dos médicos, ainda sem grandes raízes profissionais nos grandes centros, eles próprios à data (década de 80) sobrelotados, do que após a conclusão dos processos de especialização, quatro, cinco ou seis anos depois, prazo durante o qual foram cimentando a sua vinculação centrípeta.
Quando em 1983, após a publicação do Decreto das Carreiras Médicas (Decreto-lei 310/82) e o desenvolvimento da carreira de Clínica Geral, foi considerado que as carências de médicos na periferia estavam muito minoradas – o que não era real, subsistindo grandes assimetrias – tendo sido consequentemente extinto o SMP, pelo Decreto-Lei 139/83, de 28 de março.
Igualmente foi ignorado o importante papel que o SMP teve como complemento da formação em exercício dos licenciados em Medicina, até aí demasiado vinculada a uma prática hospitalar que não espelhava a realidade socio-sanitária do país, como antes referido, escamoteando-a e privando-os de um vetor essencial na consolidação da sua formação humanista.
Pena foi que o conceito de Trabalho em Grupo – paradigmático do SMP – não fosse alargado à Equipa Multidisciplinar, talvez com isso se tivesse podido ir mais fundo na tão necessária reforma dos Serviços de Saúde, vertical e transversal! Seria, porventura, uma ótima oportunidade para retomar a experiência, alargando-a a outros grupos profissionais, constituindo equipas multiprofissionais disponíveis para aceitar o desafio de uma verdadeira integração de cuidados.
Em síntese, o Serviço Médico na Periferia (1975-83) reunia todos os requisitos para ser um precursor – e em alguns casos, tê-lo-á sido – do que se podem considerar os pilares ideais de um Serviço de Saúde, no seu significado mais amplo, centrado nas Pessoas – Utentes, Profissionais e Comunidade: Proximidade, Acessibilidade, Prontidão, Continuidade e Integração, imprescindíveis para gerarem Confiança – fundamental na consolidação e sustentabilidade de um Serviço Nacional de Saúde.
Ana Jorge
Antonio Leuschner